
No domingo, eu e meu namorado fomos ao Cinesala — um cinema de rua localizado na Fradique Coutinho, bem conhecido e sempre movimentado aos finais de semana. Fomos assistir ao novo filme nacional Vitória. Ao sairmos da sessão, fomos jantar, mas confesso que a conversa ficou centrada em uma coisa só: o filme.
Um longa de produção simples, mas que deixa na mente um turbilhão de reflexões sobre um problema escancarado — um problema que sabemos que existe, mas sobre o qual raramente pensamos a partir de quem vive essa realidade todos os dias.
Me senti dentro do apartamento da Dona Nina, a nossa Vitória. O filme me prendeu do início ao fim e me tocou de uma maneira que me fez, de verdade, sentir o que seria estar naquele quarto, convivendo com a incerteza de acordar viva no dia seguinte — porque, a qualquer momento, uma bala perdida pode atravessar a parede e encerrar tudo.
No filme Vitória, tem algo que fala mais alto que qualquer cena de superação: é o silêncio incômodo da realidade por trás da história do Marcinho. Ele não é o protagonista, mas carrega nas costas o peso de ser uma criança nascida dentro da favela, onde o tráfico não é só uma escolha — é uma presença, um caminho que se impõe mesmo quando você não o quer.
Marcinho não precisou ir atrás do tráfico — ele estava ali, na porta de casa, nos corredores apertados, no olhar dos mais velhos. E como fugir disso quando tudo ao seu redor aponta nessa direção?
O filme mostra isso sem romantizar, mas também sem aprofundar demais. Ainda assim, é impossível não perceber: quando Marcinho ajuda Dona Nina em troca de uns trocados, não é só gentileza — é necessidade. Ele tenta aliviar a barra da mãe, puxando pra si responsabilidades que nunca deveriam ser suas.
Dentro da realidade dele, o tráfico não aparece como algo distante, criminoso, condenável. Aparece como uma promessa de solução rápida. E aí é que mora o problema: quando a vida te aperta e a fome bate antes da lição de casa, o “errado” começa a parecer viável.
O que o filme escancara — mesmo que discretamente — é que, pra muita gente, não existe escolha justa quando não existem oportunidades reais.
Também chama atenção a maneira como as pessoas tratam o Marcinho, mesmo antes dele cometer qualquer erro.
Em uma das cenas, por exemplo, ele está conversando com Dona Nina em um tom mais exaltado. Depois que ele sai do apartamento, a vizinha Bibiana aparece, dizendo estar preocupada com a senhora por ela estar recebendo “esse tipo de pessoa” dentro de casa.
Isso mostra o quanto o preconceito já está presente antes mesmo de qualquer atitude, como se a origem do garoto já bastasse para defini-lo. A favela, nesse caso, pesa mais do que o caráter — e isso fala muito sobre o olhar que a sociedade ainda tem sobre quem nasce à margem.
Mais adiante na história, conhecemos o passado de Dona Nina. Ela conta que veio de um lugar “ruim”, como define, e que precisou sair de casa ainda muito jovem para trabalhar como empregada doméstica na casa de pessoas ricas.
Foi nesse contexto de vulnerabilidade que sofreu abuso sexual — e, como consequência, engravidou. Teve uma filha, mas a perdeu pouco tempo depois do nascimento. O filme não explica como isso aconteceu, apenas deixa essa dor no ar.
O ponto que quero destacar é: tanto Marcinho quanto Dona Nina tiveram infâncias difíceis, marcadas pela ausência de oportunidades, pela falta de proteção e pela urgência de crescer antes da hora. No entanto, os rumos que tomaram foram distintos.
E isso levanta uma pergunta importante: o que isso significa dentro do filme — e, mais ainda, dentro da nossa sociedade? O que representa essa outra rota que Dona Nina escolheu seguir?
De modo algum quero levantar uma discussão sobre o que uma criança deve ou não escolher — o nome já diz tudo: criança. Não era para ela estar enfrentando decisões tão pesadas e cruéis nessa fase da vida. Mas, ainda assim, é inevitável não refletir sobre os dois lados da moeda.
Um ponto de reflexão que quero levantar é: quais são as fórmulas que a sociedade impõe para as crianças periféricas?
O filme nos dá pistas sobre isso, mas será que ele apresenta algum caminho alternativo, ou estamos diante de um ciclo fechado, em que as decisões se tornam praticamente predeterminadas pelas circunstâncias?
No fundo, sempre será uma questão de escolhas e consequências, onde as opções são, quase sempre, limitadas por uma estrutura que marginaliza desde o início.
O que o filme Vitória nos mostra, muitas vezes de forma silenciosa, é que essas crianças não têm liberdade real de escolher seu destino. A estrutura social já estabeleceu um roteiro: exclusão escolar, falta de assistência, insegurança cotidiana. Para muitos, o tráfico é o único caminho que parece possível.
No caso de Marcinho, ele não escolhe — ele é empurrado. O caminho dele não é exceção. É o retrato de uma regra.
Vitória, por outro lado, é uma figura que escapa disso — mas até que ponto? Ela também foi criada nesse mesmo ambiente hostil, dentro da mesma lógica desigual. Por isso, sua trajetória não é exatamente uma “escolha” limpa, mas uma exceção que conseguiu se desviar, talvez por força, por apoio, por sorte — ou por tudo isso junto.
No fim das contas, Vitória é uma exceção.
Ela também foi moldada dentro dessa “fórmula social”, e sua história é resultado de um sistema que falha em oferecer o mínimo que uma infância merece: educação, saúde e acolhimento.
Mas o que esperar de um país onde aquilo que deveria nos proteger é, muitas vezes, o que mais nos ameaça?
A polícia já não atua em defesa da população — se é que algum dia atuou. Ela opera em benefício próprio, da corrupção, do dinheiro que circula entre em beneficio próprio.
Não se trata de generalizar, mas é inegável que, em sua maioria, age assim. Nos matam, nos silenciam, tudo em nome de um poder que não nos pertence.
Não venho trazer respostas — longe disso. Mas a história de Vitória, representa de fato uma ruptura com esse sistema? Ou estamos apenas diante de um caso isolado, que por acaso conseguiu escapar do ciclo de exclusão e violência?
Quantas Vitórias existem em meio a tantas outras que não encontram nenhuma saída?
Por mais que Vitória tenha encontrado uma rota diferente, saio da sala de cinema com um nó na garganta e uma pergunta martelando:
Quais são, de verdade, as chances que uma criança da periferia tem de romper com essa lógica imposta?
O sistema não se move contra o tráfico, não se articula para lidar com esse problema. Mas, quando uma criança, empurrada para esse mundo desde cedo, rouba um colar, ela é imediatamente criminalizada, tratada como delinquente — e a polícia vem. Aí sim, ela é rápida. Aí sim, é eficiente.
Quando a missão é silenciar ainda mais quem já vive calado, o sistema se move depressa, rápido, preciso e impiedoso.
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